O acarajé, um dos ícones mais celebrados da culinária brasileira, carrega uma história impregnada de cultura, resistência e ancestralidade. Com suas origens fincadas no continente africano, em particular nas tradições alimentares dos povos iorubás da região do Golfo de Benim, esse “bolinho de fogo”, como é chamado em tradução literal, carrega um simbolismo que vai muito além da sua massa feita de feijão-fradinho.
Um Legado Africano que Atravessou os Oceanos
O acarajé tem suas raízes na palavra iorubá àkàrà, que significa “bola de fogo”, e jé, que quer dizer “comer”, formando algo como “comer fogo”. O nome refere-se ao seu processo culinário marcante: bolinhas de massa de feijão-fradinho, cebola e sal fritas no azeite de dendê, que não só garante sua coloração dourada característica, mas também lhe dá um sabor e aroma marcantes.
Esse prato, que nos tempos antigos era típico de celebrações religiosas em solo africano, chegou ao Brasil através dos africanos escravizados durante o período colonial. Durante a diáspora africana no Brasil, o acarajé acompanhou essas populações, adaptando-se aos novos contextos socioculturais, locais e até religiosos. Na Bahia, tornou-se uma das expressões mais emblemáticas da fusão entre mundos: o africano e o afro-brasileiro.
O Papel Religioso no Candomblé
Muito além de um simples alimento de rua, como é amplamente consumido nos dias atuais, o acarajé foi e continua sendo um elemento sagrado em rituais do candomblé. Preparado sem recheio, o bolinho é uma oferenda aos orixás – especialmente à deusa Iansã, representante dos ventos e das tempestades. Esses alimentos são preparados de forma rigorosa, atendendo às tradições religiosas, e ofertados conforme os preceitos do candomblé em cerimônias que reúnem mitos ancestrais misturados à fé e à devoção.
Cada preparação carrega sua especificidade: bolinhos maiores e alongados são destinados a Xangô, o deus do trovão, enquanto os menores são atribuídos a Iansã e aos Erês, as crianças espirituais do candomblé. Quando vendidos por baianas, em Salvador, a ligação entre a iguaria e essa espiritualidade continua: muitas vezes, o local de venda é discretamente “abatido”, ritualizado e abençoado antes do início do trabalho.
Da Religião à Sobrevivência nas Ruas
O acarajé saiu dos terreiros para as ruas da Bahia e, em Salvador, ganhou o tabuleiro das icônicas baianas de acarajé. Essas mulheres, frequentemente filhas ou netas de pessoas que também mantinham ligações profundas com o candomblé, começaram a comercializar o bolinho como uma forma de sustento. Nas mãos dessas mulheres – orquestradoras de um ritual diário de mistura, arte e economia –, o acarajé ganhou o status de patrimônio cultural.
Tradicionalmente transportado em gamelas ou tabuleiros equilibrados sobre a cabeça, o acarajé nas ruas de Salvador era vendido nos séculos XVIII e XIX em um itinerário que começava no centro histórico da cidade. As baianas de acarajé foram reconhecidas como símbolos da cultura baiana e brasileira, com seus trajes brancos, turbantes, colares e uma hospitalidade que até hoje ecoa nas ladeiras de Salvador.
Um Alimento, Muitos Significados
Com o tempo, o acarajé passou por adaptações. Atualmente, na sua versão comercial, ele é servido cortado ao meio e recheado com vatapá, camarão seco, caruru e salada de tomate e cebola. Essa transformação faz dele não apenas um bolinho de rua, mas um “sanduíche nagô”, como alguns gostam de chamar, e um dos pratos mais representativos da gastronomia baiana contemporânea.
No entanto, sua essência continua viva. Ao comprar e saborear um acarajé no tabuleiro de uma baiana, não consumimos apenas um prato típico. Sentimos o paladar de gerações que resistiram na história, adaptando suas tradições enquanto transitavam entre a sacralidade e o sustento, entre o passado africano e o presente brasileiro.
Patrimônio Cultural Brasileiro
Reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como patrimônio imaterial brasileiro, o “ofício das baianas de acarajé” simboliza a defesa de um saber ancestral que atravessou séculos, oceanos e gerações. Mais do que um alimento, o acarajé é, portanto, uma prova de resistência cultural e um elo vivo que nos ensina sobre as histórias e memórias dos povos africanos que moldaram expressivamente nossa cultura brasileira.
Então, da próxima vez que você saborear um acarajé, lembre-se: não é apenas um bolinho dourado, mas um fragmento de história. Um pedaço de espiritualidade. Uma celebração de sobrevivência e do sabor da tradição. Afinal, todo mundo gosta de acarajé – mas poucos conhecem o trabalho e a simbologia que ele carrega.