O acarajé, um dos pratos mais emblemáticos da culinária baiana, não é apenas uma iguaria deliciosa, mas também um símbolo cultural carregado de histórias e mitos. Sua origem é envolta em lendas que atravessaram o Atlântico junto com os africanos escravizados, encontrando solo fértil para florescer no Brasil. Essas histórias não só enriquecem o imaginário popular, mas também fortalecem a identidade de um povo que encontrou na comida uma forma de resistência e expressão cultural.
A Lenda de Iansã e Xangô
Uma das lendas mais conhecidas sobre a origem do acarajé está ligada aos orixás Iansã e Xangô, divindades do candomblé. Segundo a tradição oral, Iansã, também conhecida como Oiá, era uma das esposas de Xangô, o poderoso orixá do trovão e do fogo. Conta-se que apenas Iansã sabia preparar um prato especial para Xangô, o acarajé, que na língua iorubá significa “comer bola de fogo” (àkàrà + jé).
A história narra que Xangô confiou a Iansã a tarefa de preparar o acarajé, um segredo culinário que ela guardava com zelo. Certo dia, Iansã, desejando compartilhar o segredo com a outra esposa de Xangô, Oiá, entregou-lhe a responsabilidade de levar a comida ao orixá, mas alertou-a para não abrir a panela. Curiosa, Oiá desobedeceu e, ao abrir a tampa, viu uma chama de fogo subir. Assustada, ela fechou rapidamente a panela e entregou a comida a Xangô, que, ao perceber a desobediência, ordenou que ela também comesse o acarajé, tornando-a cúmplice e conhecedora do segredo.
Essa lenda não só explica a origem do nome e do prato, mas também reforça a ideia de que o acarajé é uma comida sagrada, preparada com um ritual específico e oferecida aos orixás como uma forma de veneração.
A Chegada ao Brasil
Com a chegada dos africanos escravizados ao Brasil, o acarajé atravessou o Atlântico e se estabeleceu como uma tradição culinária na Bahia. Inicialmente, o bolinho de feijão-fradinho era preparado e vendido pelas escravas e libertas nas ruas de Salvador, especialmente durante as festas religiosas. Essas mulheres, conhecidas como baianas de acarajé, carregavam tabuleiros na cabeça e anunciavam a iguaria com pregões que se tornaram parte do folclore local.
O acarajé, que nos terreiros de candomblé é oferecido aos orixás sem recheio, ganhou novos ingredientes nas ruas de Salvador. Recheado com vatapá, caruru, camarão seco e salada de tomate e cebola, o bolinho se transformou em um verdadeiro “sanduíche nagô”, adaptando-se ao paladar dos baianos e turistas.
O Sincretismo Religioso
Outra lenda interessante é o sincretismo religioso que envolve o acarajé. No contexto do candomblé, o acarajé é oferecido a Iansã, mas no sincretismo com o catolicismo, ele é associado a Santa Bárbara. Essa santa, conhecida por proteger contra raios e tempestades, é celebrada no dia 4 de dezembro, quando as baianas de acarajé preparam grandes quantidades do bolinho para distribuir aos devotos.
Essa fusão de crenças religiosas mostra como o acarajé transcende o simples ato de comer, tornando-se um símbolo de devoção e resistência cultural. As baianas, com suas roupas tradicionais e tabuleiros, são verdadeiras guardiãs dessa tradição, mantendo vivo um legado ancestral que conecta o Brasil à África.
O Registro como Patrimônio Imaterial
Reconhecendo a importância cultural e histórica do acarajé, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) registrou o “Ofício das Baianas de Acarajé” como Patrimônio Imaterial do Brasil. Esse reconhecimento não só valoriza o trabalho dessas mulheres, mas também protege e promove a continuidade dessa tradição.
O acarajé, portanto, é muito mais do que um simples alimento. Ele é uma ponte entre o passado e o presente, uma celebração da cultura afro-brasileira e um testemunho da resistência e criatividade de um povo que encontrou na culinária uma forma de manter viva sua identidade.
Conclusão
As lendas sobre a origem do acarajé enriquecem ainda mais a experiência de saborear esse prato típico. Cada mordida é um mergulho na história, uma conexão com os orixás e uma homenagem às baianas que, com suas mãos habilidosas, perpetuam uma tradição que transcende gerações. O acarajé é, sem dúvida, um dos maiores tesouros da culinária brasileira, um símbolo de fé, cultura e resistência.